A história de hoje não é bonita, porém é verídica. E o tempo
que levou para o lápis riscar o papel, foi o tempo que a ferida levou para ser
decifrada. Sim, todos temos feridas tão bem escondidas que por vezes elas
morrem conosco, dores latentes que são sentidas e nunca compreendidas.
Eu tinha 15 anos quando o conheci. Estava visitando primas
no interior. Sabe aqueles encontros onde meia dúzia de garotinhas se juntam com
meia dúzia de garotinhos, também com seus 15 anos, pra se reunir na casa de
algum deles, cujo os pais foram viajar, colocar uma música e encher a cara com
algum destilado barato e refrigerante. Ele era da mesma turminha. Um garoto
bom. Um garoto "de família".
Dez anos se passaram.
Ele saiu do interior. Fez faculdade. Mudou de estado. Mas
naquele ano estava finalizando seu mestrado e por isso voltou para o sul e
estava morando em Porto Alegre.
Eu estava de bobeira nesses aplicativos quando vi ele. Deu o
famoso "match", começamos a conversar. Dez anos de assunto não se põe
em dia em pouco tempo não é mesmo?! Então marcamos um encontro num bar.
A cerveja era artesanal e a conversa era boa. O tempo passou
voando. Ele me convidou para conhecer o apartamento dele. Lá haviam mais
cervejas. Quando me dei conta de que eu estava alcoolizada demais para decisões
sabias falei que queria ir embora.
Chamei o táxi. Ele me ajudou a entrar no táxi. Ele entrou no
táxi também, assim sem necessidade de convite, no auge da minha inocência
alcólica pensei "que querido, vai até em casa comigo para ter certeza de
que chegarei bem".
Cheguei em casa e ele entrou também. Não gostei muito, mas
não estava em condições de nada e me deitei para dormir. E todas as coisas que
vieram depois são apenas flashs. Se apagados pelo trauma, pelo álcool, ou pelos
anos eu não sei dizer.
Só lembro de acordar com ele em cima de mim, incomodada com
a situação lhe disse que não queria. Então eu apaguei. Acordei com ele em cima
de mim novamente. Disse não mais uma vez. Apaguei mais uma vez. E a situação
continuou a se repetir. Lá pelas tantas com o pouco de energia que ainda havia
em mim reclamei mais, disse que doía, que eu estava mal, que precisava dormir.
Justificava, implorava para parar uma situação onde apenas um "não"
já deveria ser suficiente. Depois do que me pareceu horas eu "Venci".
Ele levantou e foi embora.
No outro dia acordei me sentindo muito mal. "Foi só
mais um sexo ruim" repeti para mim mesma. "Não foi nada demais".
"Eu não devia ter bebido tanto." Ainda sim, a vontade de nunca mais
falar com ele persistia ali, por que será?
Então ao longo do dia comecei a sentir um cheiro horrível em
mim. Não era de suor, não era de falta de banho, mas era um cheio de podre,
insuportável. Eu tomava banho, me secava e o cheiro permanecia ali. Fui ao
médico, fiz todos os exames possíveis e deram negativo.
"Doutora, eu devo estar com alguma doença, não é
possível alguém cheirar assim"
"Ingrid, não há cheiro algum em ti."
“O cheiro” melhorou em algumas semanas, então resolvi sair
com uma menina, o papo ela gostoso, ela era linda e querida, tinha me levado um
bichinho de pelúcia de presente. Quando fomos dar nosso primeiro beijo
"Plaw", o cheiro voltou. Só que dessa vez o cheiro estava nela. Era como se a aura dela tivesse um cheiro
extremamente desagradável, insuportável, me dava ânsia de vômito. Não consegui
vê-la mais.
Sai com mais duas pessoas e o ocorrido se repetiu.
Levei isso para minha psicóloga na época e ela me disse
"Ingrid, isso é alucinação. Isso é sério. Se isso voltar a acontecer
teremos que fazer algo a respeito."
Sai de lá chorando, muito mal, pensando que nunca mais ia
conseguir me envolver com ninguém novamente e ao mesmo tempo decidida a nunca
mais tocar no assunto.
Três meses se passaram até que resolvi criar coragem para
ficar com alguém de novo. Uma menina. Ela não tinha "o cheiro".
Fiquei feliz, pensei “não estou mais louca”. Segui a vida, namorei uma menina,
fiquei por um tempo com outras. Até que no inicio desse ano resolvi sair com um
cara alto e particularmente bonito que eu conhecia há alguns anos.
Adivinhem, no primeiro beijo, “plaw”, o cheiro de novo.
Começou a me dar um nervoso. Um enjoo. Eu só queria ir embora de onde eu
estava. “Preciso dar janta pro meu cachorro” eu disse, peguei minhas coisas e
chamei um taxi.
Fiquei atordoada com aquilo, mas tentei esquecer.
Quatro meses depois fiquei com outro cara. Tão querido, tão
meigo, tão legal. "Agora vai", pensei.
Ele foi pra minha casa, dormiu lá e pela manhã me acordou
todo carinhoso e pensei “porque não?!” De repente uma crise começou a tomar
conta de mim. Eu só conseguia pensar “meu Deus tem um homem com duas vezes o
meu tamanho em cima de mim.” Ele estava vestido, apenas sem camisa. Mas já era
o suficiente. O pânico tomou conta de mim de tal forma que comecei a chorar,
sem controle nenhum. Sem entender o motivo. Sem entender o que eu estava sentindo,
ou o que estava acontecendo.
Só agora, depois de meses consigo entender que o que eu
estava sentindo eram reflexos de um trauma de anos atrás e só de pensar nisso
me vem mais lágrimas nos olhos. O “cheiro” que eu sentia era uma reação de
histeria totalmente relacionada ao trauma. Algo “podre” que eu carregava dentro
de mim, que “gritava” por uma compreensão e que eu não era capaz de enxergar.
Não foi hoje, não foi mês passado.
Aconteceu em 2014.
Dois anos e meio. Foram preciso dois anos para que eu me
desse conta do que realmente tinha acontecido e das consequências que isso
trouxe pra minha vida. E eu só me dei conta de tudo hoje através de uma
conversa que tive com uma amiga que, ao me contar sobre sua experiência de
abuso sexual, me fez entender que o que tinha acontecido comigo tinha sido um
estupro, tinha sido um abusivo e com a terapia percebi o quão traumático isso
tinha sido para mim e todas as sequelas isso me trouxe.
Escrevo hoje porque, assim como o relato da minha amiga me
abriu os olhos e me fez enxergar o que tinha acontecido comigo, talvez o meu
texto ajude outras meninas que possam ter passado pelo mesmo problema e estejam
sofrendo as consequências disso sem sequer entender direito o seu próprio
sofrimento.
Não é fácil criar coragem. Não é fácil se expor. Não é
fácil, mas é necessário.
Somos criadas numa sociedade machista de tal forma que o
abusivo é ok e deve ser aceito como normal, afinal, se eu não fui agredida
fisicamente ou verbalmente, não houve nada de errado.
Estupro não é só quando o homem desconhecido te ataca na
rua, rasga suas roupas, te espanca e violenta. Estupro é qualquer prática
sexual não consensual. Pode acontecer na sua casa, com o seu marido, namorado,
ficante, etc. Se não é 100% consentido, é estupro sim. Gera sofrimento. Gera
sequelas. Gera trauma, sim.
Se não você não tem certeza se você quer algo e você fala
“não”, você DEVE ser respeitada.
Se você está alcoolizada é ainda pior, pois o outro está
tirando vantagem de alguém que se encontra indefeso, onde é obrigado a aceitar
uma situação contra a sua vontade por incapacidade de reagir.
Acredito que o rapaz em questão, que causou tudo isso, até
hoje não vê a atitude dele como algo abusivo e de cunho estuprador. Seguiu sua
vida sem nem sequer levar esse dia como algo relevante para ele. Imagina, se eu até agora não conseguia relacionar uma coisa a outra, quanto mais ele, na
condição de homem, onde o seus direitos e vontades sempre “valeram” mais que os
meus. Mas se algum dia ele ler isso espero que tenha empatia o suficiente para
entender os efeitos de uma insistência impensada.
Aos demais homens, apenas peço reflexão e respeito. Aprendam
que um “não” já basta. E que sua “diversão” momentânea e irresponsável pode
trazer consequências devastadoras na vida outra pessoa. Porque por mais que a nossa mente esconda, por mais que a bebida entre e a gente não lembre, o corpo lembra.
O corpo lembra, o corpo sente e o trauma se faz presente; as vezes por anos, as vezes para sempre.
O corpo lembra, o corpo sente e o trauma se faz presente; as vezes por anos, as vezes para sempre.