quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Se não é 100% consentido, é estupro sim...

A história de hoje não é bonita, porém é verídica. E o tempo que levou para o lápis riscar o papel, foi o tempo que a ferida levou para ser decifrada. Sim, todos temos feridas tão bem escondidas que por vezes elas morrem conosco, dores latentes que são sentidas e nunca compreendidas.
Eu tinha 15 anos quando o conheci. Estava visitando primas no interior. Sabe aqueles encontros onde meia dúzia de garotinhas se juntam com meia dúzia de garotinhos, também com seus 15 anos, pra se reunir na casa de algum deles, cujo os pais foram viajar, colocar uma música e encher a cara com algum destilado barato e refrigerante. Ele era da mesma turminha. Um garoto bom. Um garoto "de família".
Dez anos se passaram.
Ele saiu do interior. Fez faculdade. Mudou de estado. Mas naquele ano estava finalizando seu mestrado e por isso voltou para o sul e estava morando em Porto Alegre.
Eu estava de bobeira nesses aplicativos quando vi ele. Deu o famoso "match", começamos a conversar. Dez anos de assunto não se põe em dia em pouco tempo não é mesmo?! Então marcamos um encontro num bar.
A cerveja era artesanal e a conversa era boa. O tempo passou voando. Ele me convidou para conhecer o apartamento dele. Lá haviam mais cervejas. Quando me dei conta de que eu estava alcoolizada demais para decisões sabias falei que queria ir embora.
Chamei o táxi. Ele me ajudou a entrar no táxi. Ele entrou no táxi também, assim sem necessidade de convite, no auge da minha inocência alcólica pensei "que querido, vai até em casa comigo para ter certeza de que chegarei bem".
Cheguei em casa e ele entrou também. Não gostei muito, mas não estava em condições de nada e me deitei para dormir. E todas as coisas que vieram depois são apenas flashs. Se apagados pelo trauma, pelo álcool, ou pelos anos eu não sei dizer.
Só lembro de acordar com ele em cima de mim, incomodada com a situação lhe disse que não queria. Então eu apaguei. Acordei com ele em cima de mim novamente. Disse não mais uma vez. Apaguei mais uma vez. E a situação continuou a se repetir. Lá pelas tantas com o pouco de energia que ainda havia em mim reclamei mais, disse que doía, que eu estava mal, que precisava dormir. Justificava, implorava para parar uma situação onde apenas um "não" já deveria ser suficiente. Depois do que me pareceu horas eu "Venci". Ele levantou e foi embora.
No outro dia acordei me sentindo muito mal. "Foi só mais um sexo ruim" repeti para mim mesma. "Não foi nada demais". "Eu não devia ter bebido tanto." Ainda sim, a vontade de nunca mais falar com ele persistia ali, por que será?
Então ao longo do dia comecei a sentir um cheiro horrível em mim. Não era de suor, não era de falta de banho, mas era um cheio de podre, insuportável. Eu tomava banho, me secava e o cheiro permanecia ali. Fui ao médico, fiz todos os exames possíveis e deram negativo.
"Doutora, eu devo estar com alguma doença, não é possível alguém cheirar assim"
"Ingrid, não há cheiro algum em ti."
“O cheiro” melhorou em algumas semanas, então resolvi sair com uma menina, o papo ela gostoso, ela era linda e querida, tinha me levado um bichinho de pelúcia de presente. Quando fomos dar nosso primeiro beijo "Plaw", o cheiro voltou. Só que dessa vez o cheiro estava nela.  Era como se a aura dela tivesse um cheiro extremamente desagradável, insuportável, me dava ânsia de vômito. Não consegui vê-la mais.
Sai com mais duas pessoas e o ocorrido se repetiu.
Levei isso para minha psicóloga na época e ela me disse "Ingrid, isso é alucinação. Isso é sério. Se isso voltar a acontecer teremos que fazer algo a respeito."
Sai de lá chorando, muito mal, pensando que nunca mais ia conseguir me envolver com ninguém novamente e ao mesmo tempo decidida a nunca mais tocar no assunto.
Três meses se passaram até que resolvi criar coragem para ficar com alguém de novo. Uma menina. Ela não tinha "o cheiro". Fiquei feliz, pensei “não estou mais louca”. Segui a vida, namorei uma menina, fiquei por um tempo com outras. Até que no inicio desse ano resolvi sair com um cara alto e particularmente bonito que eu conhecia há alguns anos.
Adivinhem, no primeiro beijo, “plaw”, o cheiro de novo. Começou a me dar um nervoso. Um enjoo. Eu só queria ir embora de onde eu estava. “Preciso dar janta pro meu cachorro” eu disse, peguei minhas coisas e chamei um taxi.
Fiquei atordoada com aquilo, mas tentei esquecer.
Quatro meses depois fiquei com outro cara. Tão querido, tão meigo, tão legal. "Agora vai", pensei.
Ele foi pra minha casa, dormiu lá e pela manhã me acordou todo carinhoso e pensei “porque não?!” De repente uma crise começou a tomar conta de mim. Eu só conseguia pensar “meu Deus tem um homem com duas vezes o meu tamanho em cima de mim.” Ele estava vestido, apenas sem camisa. Mas já era o suficiente. O pânico tomou conta de mim de tal forma que comecei a chorar, sem controle nenhum. Sem entender o motivo. Sem entender o que eu estava sentindo, ou o que estava acontecendo.
Só agora, depois de meses consigo entender que o que eu estava sentindo eram reflexos de um trauma de anos atrás e só de pensar nisso me vem mais lágrimas nos olhos. O “cheiro” que eu sentia era uma reação de histeria totalmente relacionada ao trauma. Algo “podre” que eu carregava dentro de mim, que “gritava” por uma compreensão e que eu não era capaz de enxergar.
Não foi hoje, não foi mês passado.
Aconteceu em 2014.
Dois anos e meio. Foram preciso dois anos para que eu me desse conta do que realmente tinha acontecido e das consequências que isso trouxe pra minha vida. E eu só me dei conta de tudo hoje através de uma conversa que tive com uma amiga que, ao me contar sobre sua experiência de abuso sexual, me fez entender que o que tinha acontecido comigo tinha sido um estupro, tinha sido um abusivo e com a terapia percebi o quão traumático isso tinha sido para mim e todas as sequelas isso me trouxe.
Escrevo hoje porque, assim como o relato da minha amiga me abriu os olhos e me fez enxergar o que tinha acontecido comigo, talvez o meu texto ajude outras meninas que possam ter passado pelo mesmo problema e estejam sofrendo as consequências disso sem sequer entender direito o seu próprio sofrimento.
Não é fácil criar coragem. Não é fácil se expor. Não é fácil, mas é necessário.
Somos criadas numa sociedade machista de tal forma que o abusivo é ok e deve ser aceito como normal, afinal, se eu não fui agredida fisicamente ou verbalmente, não houve nada de errado.
Estupro não é só quando o homem desconhecido te ataca na rua, rasga suas roupas, te espanca e violenta. Estupro é qualquer prática sexual não consensual. Pode acontecer na sua casa, com o seu marido, namorado, ficante, etc. Se não é 100% consentido, é estupro sim. Gera sofrimento. Gera sequelas. Gera trauma, sim.
Se não você não tem certeza se você quer algo e você fala “não”, você DEVE ser respeitada.
Se você está alcoolizada é ainda pior, pois o outro está tirando vantagem de alguém que se encontra indefeso, onde é obrigado a aceitar uma situação contra a sua vontade por incapacidade de reagir.
Acredito que o rapaz em questão, que causou tudo isso, até hoje não vê a atitude dele como algo abusivo e de cunho estuprador. Seguiu sua vida sem nem sequer levar esse dia como algo relevante para ele. Imagina, se eu até agora não conseguia relacionar uma coisa a outra, quanto mais ele, na condição de homem, onde o seus direitos e vontades sempre “valeram” mais que os meus. Mas se algum dia ele ler isso espero que tenha empatia o suficiente para entender os efeitos de uma insistência impensada.


Aos demais homens, apenas peço reflexão e respeito. Aprendam que um “não” já basta. E que sua “diversão” momentânea e irresponsável pode trazer consequências devastadoras na vida outra pessoa. Porque por mais que a nossa mente esconda, por mais que a bebida entre e a gente não lembre, o corpo lembra. 
O corpo lembra, o corpo sente e o trauma se faz presente; as vezes por anos, as vezes para sempre.

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